Diógenes de Sínope: “um Sócrates furioso”.
A expressão que dá título a
este trabalho, supostamente atribuída a Platão, por si só já nos leva ao
encontro da natureza radical que a escola cínica apresentava, bem como seu
principal representante: Diógenes de Sínope.
Tanto o cinismo como Diógenes
encontram-se envoltos em muita polêmica e controvérsia. Fato emblemático que
gera cores ainda mais abrasadoras sobre essa escola e esse personagem que
revelam e confirmam uma das características mais fascinantes e originais da
Filosofia: o combate contumaz à doxa, a
alergia patológica ao lugar-comum e seus inúmeros representantes da verdade
obediente, arquiteta tirânica do pensar e agir humanos, nas suas relações com o
mundo e consigo mesmo.
Sobre o cinismo, sabemos que
surgiu em Atenas entre os séculos III e IV a.C e teve em Antístenes (440-336
a.C) seu fundador. Este, por sua vez, foi discípulo de Sócrates, chegando mesmo
a afirmar, em determinado momento, que seus seguidores eram condiscípulos de
Sócrates, vindo mais tarde a se afastar da escola socrática a fim de
estabelecer os contornos da sua própria escola. A palavra cinismo vem do grego Kynismós, no latim cynismu. Sua essência semântica
nos remete à “igual a um cão”. Porém, não existe consenso até mesmo entre os
estudiosos da língua e desta escola. É corrente também a influência da palavra
grega kion, kinos, que
significa cachorro,, cão, visto que a edificação desta escola se deu no Ginásio
Cinosarge (cachorro branco), onde Antístenes se reunia com seus discípulos.
Todavia, a evidência que dá personalidade a todas essas conjecturas vem do fato
de os atenienses se referiam aos cínicos como cães e eles próprios assumirem
essa alcunha com pueril diligência.
Os cínicos eram facilmente
identificados onde quer que chegassem: comiam, bebiam, dormiam, faziam sexo,
defecavam, masturbavam-se em qualquer lugar. Acomodando-se, da mesma forma,
prazerosamente em ruas, calçadas, praças, feiras, mercados, onde quer que lhes
coubessem. Sempre maltrapilhos, ou mesmo nus, escandalizavam a todos, deixando
no ar uma tênue linha imaginária entre o deboche total às convenções sociais e
um fundamentalismo filosófico militante.
Diógenes de Sínope (413-323
a.C), principal representante da escola cínica, teve uma vida conturbada, mas
bastante coerente e ativa após ser admitido como discípulo por Antístenes.
Envolveu-se em fraudes, viveu no exilio e como escravo até encontra-se
definitivamente com a Filosofia, já na segunda metade de sua existência. A sua
admissão por Antístenes não foi fácil, aconteceu aos solavancos e ameaças de
porretadas. “Chegando a Atenas encontrou-se com Antístenes; repelido por este
que nunca recebia bem os discípulos, graças à sua perseverança conseguiu
convencê-lo. Certa vez, quando Antístenes ergue o bastão contra Diógenes, este
ofereceu a cabeça, acrescentando: ‘Golpeia, pois não acharás madeira tão dura
que possa fazer-me desistir de conseguir que me digas alguma coisa, como me
parece que é o teu dever’”.

Para os cínicos, o desapego a
tudo o que é material e passível de ser apropriado externamente constitui-se
como alicerce das magnas virtudes humanas. Os preceitos e regras sociais,
morais, religiosas, políticas e jurídicas são nuvens negras que obscurecem o
verdadeiro conhecimento sobre si mesmo. A própria Filosofia, quando se reduz à
retórica, abstratismos e legítimas instituições e exercícios de dominação, trai
a si mesma.
Antístenes dizia que os
homens não deveriam viver conforme as leis, mas conforme sua natureza. no que
concerne à Política, Diógenes a comparava ao fogo: “se ficamos muito longe,
sentiremos frio, mas se ficamos muito perto, nos queimamos”. Essa atitude
equidistante frente ao mundo incorporava a máxima cínica de que: “o homem
dispõe de tudo o que necessita para viver”. A isto chamavam de autarquia
(autarquia), no original grego autárkeia,
que significa autossuficiência, independência. Condição inarredável do
sábio. Caminho único para a virtude e a felicidade.
A convivência de Diógenes com
a filosofia e nos filósofos também não foi muito pacífica. Platão era sua
principal vítima, a quem considerava vaidoso, orgulhoso e excessivamente
falante. Segundo algumas narrativas, este fora confrontado e desafiado
publicamente várias vezes por Diógenes, fato que lhe rendera alcunha de
“Sócrates furioso, propagador de inutilidades”, pela ótica de Platão. Acerca da
Filosofia, para Diógenes, a existência submetida apenas à teoria, refém de
especulações intelectuais, longe da prática, do exemplo e da ação, perdia
completamente o seu sentido.
Um encontro com Diógenes é um
diálogo com o escândalo pertinente. Ele é uma força da natureza, indomável e
imprevisível. Alguns estudiosos atuais chegam a considera-lo o pai do
Anarquismo, outros acreditam ser urgente o retorno da sua irreverencia
autêntica num mundo encharcado pelo politicamente correto; outros ainda têm
certeza de que ele não passa de uma lembrança nostálgica exótica e divertida.
Diógenes, em verdade, não
figura entre as grandes estrelas da constelação dos famosos, talvez esteja
quase esquecido. Mesmo assim a lembrança desse condiscípulo de Sócrates,
irônico como seu percursor, faz emergir em nossa memoria a célebre passagem em
que este tomava um banho de sol quando foi encoberto pela figura majestosa de
Alexandre, o Grande, que lhe disse: “Pede-me o que quiseres”; Diógenes lhe
responde: ”Deixa-me o sol”. Perplexo e deslocado ante a tanta sagacidade e
despojamento, afastou-se e comentou com os que acompanhavam: “Se não fosse
Alexandre, o Grande, gostaria de ser Diógenes de Sínope”.
Em seu túmulo foi erguida uma
coluna contento um cão de mármore com a seguinte inscrição: “O próprio bronze
envelhece com o tempo, mas tua glória, Diógenes, nem toda eternidade destruirá;
pois apenas tu ensinaste aos mortais a lição da autossuficiência na vida e a
maneira mais fácil de viver”.
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