sábado, 22 de setembro de 2012

Grandes Mestres!


Diógenes de Sínope: “um Sócrates furioso”.
A expressão que dá título a este trabalho, supostamente atribuída a Platão, por si só já nos leva ao encontro da natureza radical que a escola cínica apresentava, bem como seu principal representante: Diógenes de Sínope.
Tanto o cinismo como Diógenes encontram-se envoltos em muita polêmica e controvérsia. Fato emblemático que gera cores ainda mais abrasadoras sobre essa escola e esse personagem que revelam e confirmam uma das características mais fascinantes e originais da Filosofia: o combate contumaz à doxa, a alergia patológica ao lugar-comum e seus inúmeros representantes da verdade obediente, arquiteta tirânica do pensar e agir humanos, nas suas relações com o mundo e consigo mesmo.
Sobre o cinismo, sabemos que surgiu em Atenas entre os séculos III e IV a.C e teve em Antístenes (440-336 a.C) seu fundador. Este, por sua vez, foi discípulo de Sócrates, chegando mesmo a afirmar, em determinado momento, que seus seguidores eram condiscípulos de Sócrates, vindo mais tarde a se afastar da escola socrática a fim de estabelecer os contornos da sua própria escola. A palavra cinismo vem do grego Kynismós, no latim cynismu. Sua essência semântica nos remete à “igual a um cão”. Porém, não existe consenso até mesmo entre os estudiosos da língua e desta escola. É corrente também a influência da palavra grega kion, kinos, que significa cachorro,, cão, visto que a edificação desta escola se deu no Ginásio Cinosarge (cachorro branco), onde Antístenes se reunia com seus discípulos. Todavia, a evidência que dá personalidade a todas essas conjecturas vem do fato de os atenienses se referiam aos cínicos como cães e eles próprios assumirem essa alcunha com pueril diligência.
Os cínicos eram facilmente identificados onde quer que chegassem: comiam, bebiam, dormiam, faziam sexo, defecavam, masturbavam-se em qualquer lugar. Acomodando-se, da mesma forma, prazerosamente em ruas, calçadas, praças, feiras, mercados, onde quer que lhes coubessem. Sempre maltrapilhos, ou mesmo nus, escandalizavam a todos, deixando no ar uma tênue linha imaginária entre o deboche total às convenções sociais e um fundamentalismo filosófico militante.
Diógenes de Sínope (413-323 a.C), principal representante da escola cínica, teve uma vida conturbada, mas bastante coerente e ativa após ser admitido como discípulo por Antístenes. Envolveu-se em fraudes, viveu no exilio e como escravo até encontra-se definitivamente com a Filosofia, já na segunda metade de sua existência. A sua admissão por Antístenes não foi fácil, aconteceu aos solavancos e ameaças de porretadas. “Chegando a Atenas encontrou-se com Antístenes; repelido por este que nunca recebia bem os discípulos, graças à sua perseverança conseguiu convencê-lo. Certa vez, quando Antístenes ergue o bastão contra Diógenes, este ofereceu a cabeça, acrescentando: ‘Golpeia, pois não acharás madeira tão dura que possa fazer-me desistir de conseguir que me digas alguma coisa, como me parece que é o teu dever’”.
O cinismo de Diógenes não condiz com a acepção moderna e vulgar desta palavra que traz em si um dos mais desagregadores sintomas da nossa sociedade atual, pois justifica a dissimulação, a indiferença, a falta de generosidade, o descaramento e destacadamente, o filho dileto de todas as mazelas: a corrupção. Ao contrário deste festival de barbaridades desumanizantes, Diógenes verticaliza os ensinamentos de seu mestre Antístenes, traduzindo mediante sua própria vida, os ideais desta escola.
Para os cínicos, o desapego a tudo o que é material e passível de ser apropriado externamente constitui-se como alicerce das magnas virtudes humanas. Os preceitos e regras sociais, morais, religiosas, políticas e jurídicas são nuvens negras que obscurecem o verdadeiro conhecimento sobre si mesmo. A própria Filosofia, quando se reduz à retórica, abstratismos e legítimas instituições e exercícios de dominação, trai a si mesma.
Antístenes dizia que os homens não deveriam viver conforme as leis, mas conforme sua natureza. no que concerne à Política, Diógenes a comparava ao fogo: “se ficamos muito longe, sentiremos frio, mas se ficamos muito perto, nos queimamos”. Essa atitude equidistante frente ao mundo incorporava a máxima cínica de que: “o homem dispõe de tudo o que necessita para viver”. A isto chamavam de autarquia (autarquia), no original grego autárkeia, que significa autossuficiência, independência. Condição inarredável do sábio. Caminho único para a virtude e a felicidade.
A convivência de Diógenes com a filosofia e nos filósofos também não foi muito pacífica. Platão era sua principal vítima, a quem considerava vaidoso, orgulhoso e excessivamente falante. Segundo algumas narrativas, este fora confrontado e desafiado publicamente várias vezes por Diógenes, fato que lhe rendera alcunha de “Sócrates furioso, propagador de inutilidades”, pela ótica de Platão. Acerca da Filosofia, para Diógenes, a existência submetida apenas à teoria, refém de especulações intelectuais, longe da prática, do exemplo e da ação, perdia completamente o seu sentido.
Um encontro com Diógenes é um diálogo com o escândalo pertinente. Ele é uma força da natureza, indomável e imprevisível. Alguns estudiosos atuais chegam a considera-lo o pai do Anarquismo, outros acreditam ser urgente o retorno da sua irreverencia autêntica num mundo encharcado pelo politicamente correto; outros ainda têm certeza de que ele não passa de uma lembrança nostálgica exótica e divertida.
Diógenes, em verdade, não figura entre as grandes estrelas da constelação dos famosos, talvez esteja quase esquecido. Mesmo assim a lembrança desse condiscípulo de Sócrates, irônico como seu percursor, faz emergir em nossa memoria a célebre passagem em que este tomava um banho de sol quando foi encoberto pela figura majestosa de Alexandre, o Grande, que lhe disse: “Pede-me o que quiseres”; Diógenes lhe responde: ”Deixa-me o sol”. Perplexo e deslocado ante a tanta sagacidade e despojamento, afastou-se e comentou com os que acompanhavam: “Se não fosse Alexandre, o Grande, gostaria de ser Diógenes de Sínope”.
Em seu túmulo foi erguida uma coluna contento um cão de mármore com a seguinte inscrição: “O próprio bronze envelhece com o tempo, mas tua glória, Diógenes, nem toda eternidade destruirá; pois apenas tu ensinaste aos mortais a lição da autossuficiência na vida e a maneira mais fácil de viver”.

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